O peso da desinformação em saúde
Redes sociais ampliaram alcance de fake news e de conteúdos imprecisos. Desinformação tem impacto direto na saúde e principal estratégia de combate é educação
Mais do que um conceito abstrato, o fenômeno da desinformação não é inócuo e tem trazido impacto na vida real. Quando as notícias falsas – também conhecidas pelo termo em inglês fake news – ocorrem em saúde, o resultado é ainda mais perigoso, como ficou evidente durante a pandemia de Covid-19. Mas muito além da hesitação vacinal, a desinformação está relacionada também ao sofrimento mental e à demora para obter cuidados de saúde, segundo uma revisão sistemática realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, por exemplo, emagrecimento, câncer e diabetes eram os temas mais frequentes em notícias falsas sobre saúde, de acordo com levantamento realizado pela revista VEJA em 2018.
O fato é que a desinformação é um problema que desafia a saúde em vários contextos e que impacta toda a sociedade. Quatro em cada dez brasileiros são impactados por pelo menos uma fake news por dia. E sete em cada 10 já acreditaram em pelo menos uma notícia falsa. Interromper esse ciclo é uma tarefa complexa, já que notícias dessa natureza têm 70% mais chances de serem compartilhadas do que as verdadeiras, gerando, assim, um efeito cascata.
“Fake news em saúde mata. A desinformação é ruim em qualquer área da civilização, mas na saúde, ela tem um efeito particularmente catastrófico. Ela tem o poder de desestimular, de fazer a pessoa largar um tratamento, a trocar o tratamento com supervisão médica por um baseado em achismo, sem respaldo científico”, diz Ricardo Castellani, gerente sênior de comunicação corporativa da Novo Nordisk.
E, além de interferir na saúde, que vai do atraso da busca por ajuda especializada até em questões mentais, a desinformação também tem pode ter um impacto financeiro indireto ao sistema de saúde. Em 2020, de acordo com a London Economics, os custos indiretos da desinformação ao sistema de saúde do Reino Unido foi de 3,6 bilhões de libras no período analisado.
Compartilhamento perigoso
As fake news não surgiram na pandemia, mas foi durante a crise sanitária que a proliferação de desinformação foi exponencial e que o impacto disso na saúde passou a ser mais explorado. A menção ao termo fake news e saúde no Pubmed, plataforma mundial que concentra base de dados de estudos científicos, cresceu 7 vezes entre 2019 e 2022. Um estudo brasileiro, publicado no Journal of Public Health, analisou o período pandêmico e concluiu que a infodemia pode causar transtornos psicológicos e pânico, medo, depressão e fadiga.
Na saúde, a grande preocupação em relação às fake news é que narrativas inverídicas influenciem as pessoas a ter atitudes que não sejam ideais para elas. Embora sejam necessários mais estudos para quantificar esse impacto, é comum que o problema seja visto no dia a dia dos consultórios médicos. Um levantamento realizado pela Associação Médica Brasileira, apontou que 85% dos médicos ouvidos em pesquisa dizem que fake news interferem na adesão à vacinação no Brasil.
O tema é tão central que, no final de outubro desde ano, o Governo Federal anunciou o programa Saúde Com Ciência, que tem como objetivo enfrentar a desinformação e defender a vacinação, tópico que costuma estar no alvo dos propagadores de informações falsas. No portal da iniciativa, é possível encontrar artigos de checagem, espaço para tirar dúvidas sobre as vacinas e curiosidades sobre o universo da imunização.
No câncer, médicos costumam alertar para o impacto de textos que vão contra a mamografia ou que estimulam o uso de tratamentos naturais, em detrimento das terapias indicadas por especialistas. Em pacientes com obesidade, a desinformação se inicia com mensagens que reforçam o estigma relacionado à força de vontade, o uso de soluções milagrosas ou de dietas sem comprovação científica como soluções para a perda de peso saudável.
Narrativas preconceituosas, baseadas em informações infundadas, ajudam a perpetuar uma comunicação estigmatizante, segundo ressalta Fernanda Baeza Scagliusi, professora Doutora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). Basta rolar a tela do celular nas principais redes sociais para encontrar conteúdo desse tipo, acompanhado por ofertas de dietas, suplementos, chás que prometem resultados milagrosos. “O contexto cultural é muito prevalente e problemático. É muito comum que as pessoas que têm um peso corporal mais elevado sejam estigmatizadas em praticamente todos os lugares, por todos os tipos de pessoas”, diz Scagliusi.
Um estudo publicado na revista “Psicologia: teoria e pesquisa”, revisou uma coleção de 32 artigos de diferentes países que investigaram o impacto do uso das redes sociais na imagem corporal dos usuários. A conclusão foi de que as redes têm um impacto predominantemente negativo no humor e na autoestima, além de influenciarem a busca pelo corpo magro, “considerado como modelo de beleza”.
Viralizar é o objetivo
O mecanismo de ação da desinformação é bastante característico e pensado minuciosamente para viralizar. É criado a partir de narrativas com o intuito de impactar a audiência, reforçando vieses que geram identificação e provocam o compartilhamento. Muitas vezes, trazem certa ambiguidade, dados imprecisos ou bem parecidos com a realidade – ficando difícil identificar o que é verdade ou não.
“Infelizmente, as pessoas não são treinadas para ter um olhar crítico com relação ao que elas consomem enquanto conteúdo. Por isso, até mesmo um conteúdo que parece ruim para nós, profissionais de comunicação, pode passar como verdade entre quem não teve esse aprendizado”, aponta Luiz Chinan, coordenador da Aliança Aberje, uma iniciativa da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial que visa conscientizar a comunidade empresarial – funcionários e stakeholders – sobre o tema e estimular o debate em torno da prevenção e combate às fake news.
O objetivo de quem cria e compartilha desinformação não é explicito, mas normalmente está atrelado a algum ganho, seja financeiro ou político. Castellani, da Novo Nordisk, pontua que é preciso prestar atenção nas fake news fabricadas propositalmente como parte de estratégia de marketing nas plataformas. “Certas fake news são produzidas intencionalmente, para causar confusão e tirar proveito de quem as recebe. É aquela que vem por trás do discurso de ‘compra isso, compra aquilo que vai te ajudar, vai fazer milagre’. É o criador de conteúdo que está apenas querendo o dinheiro do clique, da publicidade, sem responsabilidade sobre o que está propagando”, alerta.
Até porque, com conexão à internet e um aparelho celular, qualquer pessoa pode criar conteúdos, comunidades e ter sua voz amplificada. O Brasil lidera o ranking de influenciadores digitais no Instagram, somando mais de 10,5 milhões de criadores de conteúdo, e fica em segundo lugar em números no TikTok e YouTube, segundo relatório global feito pela Nielsen.
Iniciativas de combate à desinformação
Mas se por um lado as fake news trazem consequências graves para a saúde da sociedade e também do ponto de vista individual, por outro há uma maior consciência da existência delas. De acordo com pesquisa da agência multinacional de comunicação Edelman, os brasileiros estão sete vezes mais dispostos a verificar se os dados de informações sobre saúde são verdadeiros em comparação ao período pré-pandêmico.
Nesse contexto, profissionais de saúde passaram a ser mais ativos nas redes sociais com o objetivo de propagar informações úteis para a sociedade. Durante a própria pandemia, foi possível comprovar a importância de ter agentes de saúde qualificados e responsáveis disponíveis como fonte segura de informação. Este movimento aqueceu a discussão sobre a conduta ética dos profissionais no ambiente digital e culminou em uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada em setembro, que atualiza a regulamentação sobre a prática de publicidade médica. O novo texto se debruçou em ampliar o escopo do que estava vigente até então – até para acompanhar a evolução dos meios de comunicação –, mas definiu critérios, permissões e proibições para a utilização de redes sociais.
E há ainda várias iniciativas de veículos de imprensa, instituições de ensino, governo e instituições privadas no combate à desinformação na área. Leandro Becker, editor-chefe de jornalismo da Agência Lupa, uma das principais agências de checagem de notícias no Brasil, conta como o próprio modelo de verificação de dados precisou se adaptar ao longo dos últimos anos, com o surgimento de uma indústria profissionalizada de fake news: “A Lupa foi criada em 2015, quando o assunto ainda não tinha toda essa dimensão. A princípio, o objetivo era checar qualquer fato que pudesse gerar dúvida sobre sua veracidade, sempre trabalhando com informações verificadas, dados confiáveis, fontes fidedignas”.
Oito anos depois, muita coisa mudou. Antes com o foco majoritariamente em política, a pandemia demandou um esforço maior na área de saúde. “Temos muitos especialistas em saúde, mas poucos conseguem falar de forma simples. Claro, a ciência não é simples, é complexa, mas essa forma de comunicar acaba afastando e impedindo as pessoas de compreenderem determinados assuntos”, analisa Becker. “Em economia, por exemplo, pode ser mais fácil explicar uma taxa de juros porque impacta o dia a dia, a ida ao mercado das pessoas. E explicar a atuação de um vírus no organismo, da criação de uma vacina? Apesar da tragédia da pandemia, ela trouxe uma compreensão da necessidade de comunicação acessível para instituições e profissionais de saúde. A ciência pode demorar, mas a informação, não”.
Ele ressalta que, embora a pandemia já possa ser considerada superada, a checagem continua a todo vapor. Como exemplo, ele relata que a última notícia falsa desmentida pela agência na editoria de saúde foi o boato de que o Centro para o Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) teria falsificado 99% das mortes por Covid-19.
Na obesidade, o estigma de que escolhas pessoais, como alimentação inadequada e falta de vontade, são os agentes responsáveis pela condição de saúde representa um campo fértil para mensagens oportunistas e desinformação. Uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) revelou que 28% dos entrevistados acreditam que a obesidade é fruto de decisões do indivíduo. O mesmo levantamento constatou que 60,4% dos entrevistados com sobrepeso ou obesidade já sofreram constrangimento ao buscar serviços de saúde.
Por isso discutir a obesidade como uma condição multifatorial é um dos primeiros passos para a construção de uma comunicação não estigmatizante, até mesmo dentre os profissionais da área. A nutricionista Scagliusi, que também é coordenadora do curso de Nutrição da USP, conta que a instituição tem trabalhado no aprimoramento da formação de futuros profissionais: além do desenvolvimento de uma lista de práticas de saúde para diminuir a estigmatização, houve a criação de um curso gratuito online de 30 horas que abordam tópicos como comunicação, acolhimento e sensibilização em relação ao paciente com obesidade.
Educação, conscientização e políticas públicas
A velocidade exponencial de uma notícia falsa e o impacto da desinformação na saúde pública exigem estratégias integradas, segundo destacaram os especialistas. De acordo com o levantamento da OMS citado no começo da reportagem, é preciso concentrar os esforços no desenvolvimento de políticas públicas, na criação e promoção de campanhas de sensibilização sobre o tema, na melhora da qualidade dos conteúdos sobre saúde nos meios de comunicação, além de avançar na educação digital e letramento em saúde da população.
“Nós, enquanto comunicadores, trabalhadores do setor da saúde e outros agentes sociais de influência devemos assumir essa responsabilidade”, aponta Chinan.
Este conteúdo faz parte de uma série de reportagens sobre desafios e tendências das doenças crônicas não transmissíveis produzida em conjunto com a Novo Nordisk. Para acessar os demais, acesse a página especial.